Nós, pessoas com deficiência, frequentemente somos alvo da curiosidade do povo, que, em geral, desconhece os assuntos relacionados à nossa condição. Seja no ponto de ônibus, no shopping, na escola, no trabalho, numa entrevista, as perguntas sempre vêm, repetitivas e piegas, cheias de dedos, ou inusitadas e bizarras. Segue então um pedacinho, só um pedacinho da coleção de respostas deselegantes que eu sempre quis dar a essas perguntas e abordagens que nos perseguem ao longo da vida, mas que a diplomacia nem sempre me permitiu declarar verbalmente:
1- Apresentadora de TV ao início do programa -
Então quer dizer que você enxerga com os olhos do coração e canta divinamente, não é isso?
R: Pra começar, seria muita falta de humildade da minha parte concordar com você sobre cantar divinamente; já quanto aos olhos do coração, estou pra te dizer que eles devem estar precisando de uns bons óculos, porque continuam não me avisando dos degraus, buracos, orelhões etc.
(em pensamento)
2- Jornalista de revista, cheia de dedos pra tentar saber se a minha deficiência seria congênita ou adquirida -
Como você nasceu?
R: Ih, sua mãe nunca te contou a história da sementinha?
(Essa escapou do pensamento...)
Não, eu quero saber se você nasceu assim.
R: Não, na verdade nasci bem menor e com os cabelos bem mais curtos. Ah, e dentes eu também não tinha não.
(em pensamento...)
3- Apresentador de TV -
Como você pode cantar tão bem sendo cega?
R: E como você pode apresentar um programa de TV sendo tão despreparado?
(em pensamento, trincando os dentes... :X)
4- Estudante de jornalismo em entrevista por telefone -
Em que a música te ajuda a superar os obstáculos da sua deficiência ao andar nas ruas, por exemplo?
R: Pois é, os obstáculos não estão exatamente na minha deficiência, mas sim no mundo, na mente das pessoas e nas ruas, como você mesma disse. Então o processo da superação pela música, neste caso, funciona mais ou menos assim: ao atravessar uma rua sem sinal – é só cantar um samba e todos os veículos param automaticamente; numa calçada cheia de desníveis, fradinhos, canteiros e buracos – aí é só cantar um axé que todos os obstáculos saem do meu caminho, obviamente dançando frenéticos. Agora, se eu cantar um new age, minha amiga, os caminhos mais planos, macios e cor-de-rosa se abrem sob meus pés, acompanhados de um céu lilás e nuvens à minha volta, enquanto fadas azuis e virgens me pegam pela mão e me conduzem voando até onde preciso ir, aí é quando eu transcendo mesmo tudo isso e não preciso me preocupar com mais nada.
(em pensamentos gargalhantes :D)
5- Como você enxerga? Você vê vulto? Você ta me vendo? Como você me vê?
R: Te vejo como uma pessoa bastante ansiosa e curiosa.
(em pensamento...)
6- Você não tem a visão perfeita mas, em compensação, Deus te deu um ouvido fantástico pelo jeito, não foi?
R: Na verdade ele me deu o mesmo ouvido que a vocês, vocês é que não aprendem a usar direito...
(Essa escapou... :D)
7- Como é seu dia-a-dia?
R: Mais ou menos assim: um dia, após outro dia, que veio após outro que veio depois de outro dia.
(em pensamento...)
8- Ao pedir a alguém no ponto de ônibus que me avise quando chegar o meu ônibus, o alguém me diz:
Aviso sim, se eu ainda estiver aqui eu aviso.
R: ah, q bom, então se vc não estiver mais, me manda um sinal telepático, porque o de fumaça eu não vou ver mesmo.
(em pensamento...)
9- O que aconteceu com você? (essa todo “dificiente” já ouviu!)
R: Depende: hoje? Ontem? Nas últimas horas?
(Essa foi inevitável, escapou também...)
10- Pessoas que me conduzem gentilmente até certo ponto onde devo aguarda-las voltarem e, ao solicitarem o auxílio (desnecessário neste momento) de uma terceira pessoa, conhecida ou qualquer passante, dão a seguinte ordem, oferecendo o meu braço à outra pessoa:
Segura ela aqui pra mim que já volto.
R: Não, não, eu não vou fugir não, moço.
(Essa também tive que falar! ;D)
Vale destacar aqui, minha gente, que sanar as dúvidas do povo em relação a qualquer assunto é fundamental pra minimizar preconceitos e quebrar tabus, e que depois das respostas de “Saraiva”, sempre procuro esclarecer e informar, com paciência e bom humor. E, enquanto eu, na minha missão, vou aprendendo a ser mais tolerante e menos malcriada ;), as pessoas vão aprendendo a fazer perguntas mais objetivas e abordagens mais naturais. O aprendizado é de todos!