...só disse uma coisa:
POR FAVOR, ME ENSINE A ANDAR COM VOCÊ
Marcondes Mesqueu
Sara
é uma amiga cantora, poeta, professora de música, artista circence, menina de
vida agitada normal/anormal como todas as meninas normais/anormais da sua idade,
deficiente visual e monte de outras coisas. O amigo Google sabe melhor da sua
vida do que eu. As vezes saímos pelas ruas do Rio conversando e resolvendo
coisas. Gosto de papear com ela. Aprendo muito com a sua independência e
determinação. Ela não é daquelas menininhas que gostam de ser pegas em casa. Se
a zona de conforto se oferece ela aproveita, caso contrário quebra a pedreira
até ver surgir à estrada. Decide pelo
mais prático. Quase sempre marcamos encontro na rua, saída de metrô,
rodoviária... Certa feita íamos pela Rua do Lavradio, na Lapa, Rio de Janeiro.
Eu, todo erradamente cuidadoso, e ela insistindo em segurar no meu braço para
se sentir conduzida. De repente eu desvio de um demarcador de calçada. Esqueço
da amiga. Sara esbarra no obstáculo de ferro. Acho que se machucou. Pergunto. Ela
responde que não foi nada. Pede agora com firmeza para segurar no meu braço. Seguimos.
Naquele momento entendi que Sara meio passo atrás de mim e segurando meu braço,
todo movimento que eu fizesse com o meu corpo o corpo dela perceberia e com
essa informação reagiria rapidamente. Quando vi Sara batendo de frente no
obstáculo só disse uma coisa: Por favor, me ensina a andar com você.
Entendi
que essa obrigação era dela. Abaixei a cabeça envergonhado.
O inevitável
processo de evolução se dá através da troca de informação. O receber e oferecer
um dado novo acontece naturalmente ao longo da história do homem. O escambo é
um dos sangues que alimentam a vida. Podemos dizer que existem outros sangues
como afetos, culturas, religiosidades,... e por ai vai, porém todos dependentes
das trocas.
Vou me fixar no mais
simples e óbvio fenômeno da existência humana que é a diferença entre cada um
de nós. Gordos, magros, altos, baixos, ...e de repente surge a pedra no caminho
da cultura que no passado apregoava o conceito de Normalidade para uns e
Anormalidade para outros. Deficiente para uns e Eficiente para outros. E tudo
estava resolvido. De um lado estavam os melhores e no extremo oposto os outros.
Gênios sempre existiram, mas as sociedades evoluem regidas por conceitos e
padrões que englobam a maioria. Regra é quantidade. Qualidades diferentes são
exceções. O tempo passou. Evoluímos, contudo nem todos os cascalhos da velha
construção social foram removidos.
Esse texto pretende ser
uma troca com os meus amigos deficientes visuais. Eu que, apesar de ter um
dolorido dedo de martelo escondido dentro da meia e sapato do pé direito, sou
entendido como mais um normal. Meu osso “dedal” que entorta progressivamente
gerando fisgadas não me impede de habitar essa confortável prateleira. Me
reconheço com faltas de algumas informações para lidar com “os” e “as” Tiresias
que passam pela minha vida. Se o Tiresias de Sófocles é aquele Sábio Cego que vê
além da escuridão dos seus olhos eu sou aquele que busco entender como dar luz
as formas que meus olhos registram. Como melhorar a minha comunicação com
aqueles que são donos de uma luz que vai além da visão?
Vivemos na Sociedade do
Espetáculo onde luz, cor e forma é uma trindade divinamente respeitada por uma
maioria. A beleza física se constitui um culto escravagista na vida de muitas
pessoas. Coitada das mulheres. Tem umas que se entregam a chibata da beleza.
São negras que “inloirecem”, loiras que torram nas praias e salões para
ganharem a forma da estrela do momento que é crioula. Assumir a moda é mais confortável
do que ser singular. Em tempo: Uma grande legião de homens adubam seus corpos
com medicamentos discutíveis e para alguns letais para terem musculatura de He
Man. O sonho de ser belo e visivelmente aceito é a doença do mercado. O jeito
de ver, agir e pensar nos apontam e chamam para os refletores. Os refletores
insistem em ser seletivos, preconceituosos e “produtizar” seres humanos. E por
ai segue a construção de valores que se autodestroem de tempos em tempos. A
moda é o show.
É comum sermos
convocados a declarar nossas preferências afetivas seguindo modelos de gordo,
alto, baixo ou magro; ou então moreno, louro, mulato ou negro; com tatuagem ou
sem tatuagem; careca ou cabeludo; alternativo ou sóbrio...
Beleza e sensualidade quando
estão relacionadas à roupa representa jogo de cores, modelo, audácia...
Esses e outros detalhes
da vida constroem conceitos, que constroem palavras, que constroem saberes com
os quais nos relacionamos. Até quer ponto isso é ingrediente dos meus amores e
desamores. Será que os caracóis revoltos dos cabelos da Sara contribuíram na
quantidade de carinho e admiração que eu sinto pela sua caminhada? Me ajudem a
entender os seus valores.
Entendo e pratico o
jogo de olhares e caras. É bom e divertido. Por vezes me perco quando converso
com minha amiguinha. Até onde me faço entender? O que tenho que aprender pra
melhorar? Tenho que aumentar ou diminuir em cuidados. Quando ela diz “vou pra
casa, preciso ficar só com os meus pensamentos” o que devo pensar. O que devo
fazer com a minha deficiência que se assusta ao ouvir esse desejo e vê-lo se
cumprir. Acho que nessa hora o cego sou eu. Me
ensinem a não só ver como a enxergar. Sei como as imagens se formam na
minha cabeça. Tenho vontade de saber como se forma na cabeça dela. O castelo do
Rei, o cavalo do Príncipe e o nariz da Bruxa são formas pra mim. Não sei como
se apresentam pra ela. Sou contador de histórias. Caras e bocas são texto na
hora de interpretar no palco e na vida.
Gostaria de aprender
mais sobre os valores estéticos saídos da escuridão e aprender a “melhor dizer”
que “essa roupa a deixa mais sensual, menininha, senhora ou palhacinha” e isso
se constituir numa discussão de ponto de vista onde o imaginário ganhe forma,
cor e densidade.
Até hoje ainda não dei
uma rosa para minha amiga, mas se amanhã o fizer essa rosa precisará ter cor? E
se tiver, qual será?
Em tempos de Sociedade
do Espetáculo já vi até rosa azul. Pra mim isso é um desrespeito à flor e a
natureza. Garanto que o Grande Arquiteto não aprovou. Gostaria que os meus
amigos e amigas Tiresias me ensinassem a ver e perceber a partir do ponto de
onde nasce a luz que é a escuridão.
(dedicado a Sara Bentes, uma amiga
que a sua
audácia me ofereceu)
Resposta:
Por Sara Bentes
Primeiramente: amigo, releia meu livro “quando botei a
boca no mundo”. Ele esclarece muito sobre esta “visão na escuridão”.
Segundamente, nada do que vou falar aqui representa o
segmento de pessoas com deficiência visual, parcial ou total. Tudo o que vou
falar representa eu, Sara Bentes. Cada um tem sua forma de ver, e de não ver...
Além disso, esclareço que aproveitei a oportunidade para falar a todos, e não
só a você, querido amigo.
Sim, meu mundo tem cores, formas e estética. Flores pra
mim nunca serão flores se não tiverem cores. Meu imaginário e meu inconsciente
também fazem parte de um coletivo, de uma sociedade, de uma cultura. Não vivo
num mundo à parte e óbvio. Sei o que simboliza a cor branca ou a cor vermelha
numa rosa ofertada a alguém. Assim como compartilho da crença de que cada cor
tem sua energia e seu efeito sobre nós. Pasme, há pouco tempo passei por
tratamento de cromoterapia. Não preciso ver a cor, são meus pontos energéticos
e meu corpo astral que recebem a cor. Sei o que significa um vestido preto, ou
vermelho ou bege para uma mulher que sai à noite, por exemplo; me interesso por
saber se o céu está azul limpinho ou cheio de nuvens brancas ou cinzas; depois
de certo tempo de convivência com um novo amigo, quero sim saber que cor são
seus olhos, seus cabelos e pele, e é libertador só saber sobre a aparência das
pessoas depois de me aproximar delas por suas essências e outras
características. Quando te conheço, não me faz mais a menor diferença que roupa
você veste, que cara você tem ou o que diz sua aparência. Isso foi um
aprendizado. Mas não significa que eu viva à parte das discussões e conceitos
estéticos e visuais.
Quanto ao meu pensamento, ele se forma da mesma maneira
que antes, quando eu enxergava: a partir de imagens. E você me diz: mas como
você pode pensar nas pessoas e espaços que você só conheceu agora sem enxergar?
E te respondo: pois é, há muito mais mistérios entre nossa orelha esquerda e
direita do que supõe nossa vã filosofia. Minha mente simplesmente cria essas
imagens para novos espaços e pessoas e coisas. Se te conheço hoje e
automaticamente (porque é assim que funciona) meu cérebro te imagina cabeludo e
um ano depois descubro que você na verdade é careca (como aconteceu
recentemente com um amigo) levo um tempo pra reconfigurar você na minha mente
imaginativa e te imaginar como realmente você é. Quando contei a este amigo que
antes de saber que ele era careca eu o imaginava cheio de cabelo, ele disse que
eu via era o sonho dele, que é ter muito cabelo, e me pediu que continuasse o
imaginando cabeludo. Apesar de tentar, não consegui convencer minha mente a
voltar atrás, mas algo muito estranho acontece: quando me lembro das primeiras
situações com ele, quando ainda o imaginava cabeludo, as imagens da memória me
trazem ele cabeludo...
Já as pessoas que conheço desde quando enxergava,
mantenho na memória as imagens que vi. Essas pessoas na minha mente nunca
envelhecem. É pedir muito da mente ficar alterando, redesenhando e
reconfigurando essas imagens.
Nos meus sonhos à noite, como já contei em diferentes
textos, normalmente enxergo, mas em alguns estou cega. Em outros estou
enxergando, mas com a Izadora na mão, e penso: o que diabos estou fazendo com
essa bengala? Mas gosto de sonhar enxergando, e me esforço para “abrir os
olhos” nos sonhos em que estou cega. Tenho cada vez mais sonhos lúcidos, em que
posso controlar parte ou todo o roteiro. E quando consigo, adoro procurar no
cenário em que estou carros para dirigir, e me delicio com esta sensação. Quando
quero muito saber como é fisicamente alguma pessoa próxima, peço para sonhar
com ela. Acredito no desdobramento e na projeção de consciência, o que torna
meu pedido totalmente possível. Por algumas vezes parece que fui atendida, mas
nunca saberei se o que vi é realmente a verdade ou se foi criação inconsciente.
Sempre fui e continuo sendo uma pessoa bastante visual,
não no sentido de ser guiada e dominada por minha visão, como é a maioria das
pessoas, mas no sentido de imaginar fortemente dentro. Os desenhos que eu fazia
quando enxergava eram todos criação minha. Todas as histórias que crio, contos
e romances, primeiro imagino cada cena visual na mente, pra depois traduzir em
palavras. Quando penso numa cena passada ou futura, primeiro imagino
visualmente a cena, pra depois me ater a sentimentos e outras informações relacionadas
a ela.
O mundo é visual; é sabido que praticamente 80% das
informações que o ser humano assimila é a partir da visão. Uns mais outros
menos. E outros ainda, como eu, não assimilamos nada pela visão. E isso não nos
torna automaticamente mais evoluídos ou sábios que os que enxergam, e nem nos
torna automaticamente com melhor audição, tato, olfato e paladar, e, indo mais
longe, nem sexto sentido. Cada um é um e todos esses “mitos” de cegos com super
audição, super tato, super olfato etc, explicam-se cientificamente. A sociedade
vidente (que enxerga) tem tendências a romantizar, mitificar, criar fetiches, exagerar,
subestimar, ignorar, rotular e “emprateleirar” os cegos. Tudo isso tem raízes
históricas que se entrarmos no mérito da questão escreveremos aqui um ou mais
livros. Mas só pra reforçar a ideia de que cada experiência é única, conheci um
cego que não teve tato nem pra aprender o braile, conheço cegos que também são
surdos, conheço cegos amargos e revoltados que vivem a verdadeira escuridão
espiritual, conheço cegos que se sentem seguros tocando seu braço e outros que
preferem tocar seu ombro ao caminhar, conheço cegos que preferem chorar e estar
sozinhos com seus pensamentos e meditações, enquanto outros preferem chorar no
colo de alguém e estar sempre rodeados de gente. Somos todos seres humanos, e
se faço uma opção de ir pra casa e ficar sozinha, diferente da expectativa de
meu amigo, isso não tem nada a ver com ser cega, e sim com ser humana e única.
Neste mundo visual, é claro que ficamos de fora de muito
da comunicação mais imediata entre as pessoas: a comunicação visual, que
engloba caras, bocas, olhares, gestos, posturas, movimentos e outros sinais. Com
o tempo de convivência, nossos amigos videntes vão se adaptando a outras
melhores formas de se comunicar com a gente. Não existe uma fórmula para
ensinar isso, existe a singularidade humana, e cada um de nossos amigos
videntes vai desenvolvendo suas diferentes e criativas soluções para
transformar seus sinais visuais em novas falas, ou mudanças na voz, ou novas
interjeições, ou sinais táteis dependendo da intimidade. Mas não subestime
nossa inteligência, numa conversa entre amigos normalmente estamos entendendo
tudo, e se, pela falta da visão, não entendermos vamos perguntar. Quanto à
contação de história, a palhaçaria, a dança, o teatro e outras artes
tradicionalmente visuais, faz parte de uma evolução coletiva o desafio de
adaptarmos essas modalidades artísticas cada vez mais para todos, sejam cegos,
surdos, cadeirantes etc. A arte, com suas infinitas possibilidades, sua
flexibilidade e sua criatividade, já está pronta para incluir a todos, só nos
falta manusear da melhor forma este grande instrumento.
Sobre ter mais ou menos cuidado, como guiar, como fazer
isto e aquilo, além de bom senso, o que recomendo se resume numa palavrinha só:
comunicação. “Se quiser me ajudar, pergunte primeiro se eu preciso, e se for me
ajudar, entenda primeiro como..” como diz minha canção “Pra Quê”. Comunicação é
tudo e, principalmente entre amigos, não tem que haver barreiras nela.
Por fim, não tem mistério, não tem magia, não tem encanto
nem romantismo sobre tudo isso. Sobretudo, não tem escuridão. O não ver não é
tudo preto, é simplesmente perceber de outros modos.