quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Tudo Farinha do Mesmo Saco...

É, minha gente, ainda hei de entender os caminhos do raciocínio humano. O que faz as pessoas criarem em seu imaginário a idéia de que todo cego do mundo se conhece, ou que todo cadeirante é da mesma família, ou que todo surdo estudou na mesma escola? Sim, porque é um tal da gente ouvir “Eu bem guiei um amigo seu aqui ontem” ou “Atendi uma colega sua ainda há pouco” ou “Você conhece fulano, não é? Você não conhece o fulano?!” de pessoas referindo-se a outro cidadão com a mesma deficiência que a nossa. Comentários do tipo são recorrentes, vindos dos mais variados tipos de pessoas. Outro dia cheguei cedo na rodoviária de São Paulo e fui fazer uma horinha por ali mesmo; pedi ao funcionário que me guiava que me deixasse em algum lugar onde eu pudesse me sentar. Ele me levou para umas mesinhas perto de uma lanchonete, onde, pelo som, parecia estar até bem vazio, mas ele fez questão de me botar sentada ao lado de um senhor cego, e ainda disse “Fica aqui do lado do seu amigo batendo um papinho.” Bom, a esta altura já era tarde para tentar fazer alguma escolha (e essa é uma das piores coisas quando não se enxerga: quando as pessoas acham que têm o direito de escolher por você), vamos lá então conhecer e bater um papo com mais um colega de apagão. E mal sabia o moço da rodô que papinho brabo o “meu amigo” ali desenrolaria comigo...
No metrô o que acontece muito também é, quando saltam na mesma estação dois ou mais cegos, cada um no seu caminho, o funcionário que nos espera na plataforma achar que estamos todos juntos e que vamos todos para a instituição de cegos mais próxima. Uma amiga minha, que é cega (amiga de verdade, amiga porque é linda e eu gosto dela, e não porque é cega), ao ouvir de um funcionário do metrô que uma “amiga” dela havia acabado de passar por ali, deu a resposta mais simples e perfeita, em forma de pergunta: “Você é amigo de todo mundo que enxerga?”
No último domingo, quase fui arrastada para o lado errado por conta de uma pequena coincidência somada a esta “Teoria da Nave Única”, a teoria que acredita que uma mesma nave teria trazido todos os cegos de seu planeta distante para a Terra e que, durante a longa viagem, tivemos a oportunidade de nos conhecermos e ficarmos todos amigos. Eu estava indo para o ensaio do teatro, desci na plataforma do metrô Ana Rosa e disse ao funcionário que esperaria uma amiga na catraca. Ele me conduziu até lá e me deixou do lado de dentro, antes da catraca. Um segundo funcionário correu até nós e apressou-se em dizer: “Traga ela pra cá, o pessoal dela já está aqui. Não é o pessoal com deficiência que vai pro teatro?” Contente por não ter que esperar, respondi imediatamente que era sim. E, enquanto o primeiro funcionário me levava até o grupo, pensei “Engraçado, será que todo mundo resolveu também chegar cedo hoje?” Bom, mas o funcionário certamente sabia o que estava dizendo, todos os domingos, dia do nosso ensaio, ele assiste a um grupo de pessoas, com e sem deficiência, encontrar-se ali para seguir junto rumo ao Teatro Dias Gomes. Chegamos ao grupo, mas ninguém pareceu me ver. “Tem uma moça loirinha bem aí na frente” informou-me o funcionário. Pensei então na loirinha mais loirinha do grupo e chamei “Aninha! Aninha!” e nada... Que sensação estranha. Sei que meu grupo do teatro é grande, mas será que uma parte dele realmente não me conhecia ou não me notaria? Acho que não. Perguntei ao funcionário quantos eram no grupo, e ele me respondeu que eram uns vinte cegos. Opa, no meu grupo somos apenas seis do apagão e da baixa resolução de imagem, dentre outras deficiências. “Moço, acho que esse não é o meu grupo” falei decepcionada ao funcionário “mas pode me deixar aqui perto que minha amiga me acha quando chegar”. Assim ele fez, só me arrependi de ter dito a palavra “perto”... Primeiro foi uma moça, mãe de uma menininha cega, que se aproximou perguntando de qual escola de cegos eu era e dizendo que ainda não tinha me visto naquela excursão ao teatro. Depois foi um senhor, que veio me perguntar sobre a peça que assistiríamos, depois outro e mais outro, e de novo e de novo eu explicava que meu teatro era outro. Após uns bons minutos de espera, o grupo pareceu completar-se e seguiu rumo ao Sesc, onde assistiriam a uma peça teatral. Achando graça da situação, fiquei ali rindo sozinha. Agora o ambiente era silencioso e suspirei aliviada. Ouvi alguém correndo em minha direção, era um senhor forte que me pegou pelo braço e tentou me puxar dizendo:
-Vem! Vem! Nós esquecemos você! Vamos rápido!
-Não, moço, eu não estou indo pro mesmo teatro que vocês. Expliquei rindo mais um pouco.
-Como não? Você não é do nosso grupo? ele perguntava quase estupefato.
-Estou indo pra outro lugar, nem conheço ninguém do grupo de vocês.
-Não tem problema, vem assim mesmo!
Claro que a essa altura ele já havia compreendido o engano e estava brincando. E esperamos, pessoal, que o restante das pessoas, as pessoas que enxergam e todos os seus “colegas” de visão perfeita, também não demorem muito pra entender que nós, pessoas com deficiência, não viemos e nem vamos todos para o mesmo lugar, que não temos todos a mesma personalidade e nem fazemos todos as mesmas escolhas.

2 comentários:

  1. É, minha amiga... Infelizmente, a humanidade ainda não aprendeu a ver o outro como outro, a despertar o brilhante sentimento da alteridade. Quem sabe um dia...

    Um grande beijo e siga em frente!

    ResponderExcluir
  2. Adorei, n sou invisual, sou tetra, mas me vi nesse relato. bjs Carol
    soares.caroline@gmail.com

    ResponderExcluir