sexta-feira, 11 de junho de 2010

Cantos de Euclides

Gente! Ontem ganhei um presentão e claro que quero compartilhar com vocês.
Há quase um ano tive a felicidade de participar de uma grande produção teatral, atuando e cantando. A peça cortejo se chama Cantos de Euclides e estreou na FLIP, Feira Literária de Paraty, marcando o centenário da morte do escritor Euclides da cunha. A produção foi do grupo Sala Preta e contou com muita música e dança. Mas não serve muito falar, vale é conferir o vídeo com momentos bem significativos da peça:
http://www.youtube.com/watch?v=oTVYg5gY-lo
O vídeo, só há pouco editado e lançado no youtube, foi meu presente de ontem, iluminando meu dia e me fazendo acessar na memória as emoções vividas nesse espetáculo de muito trabalho e talento. Um dos momentos mágicos que tive, já num ensaio, relatei no texto abaixo, escrito há um ano e que republico agora.
A todos que participaram da produção, foi um orgulho para mim integrar este trabalho impar. Obrigada!

Estar na Roda

-Vem, pessoal, vem todo mundo que quiser participar da ciranda!- eles chamavam os músicos e outros integrantes do grande grupo, enquanto a maior parte do elenco se encaminhava para o ponto da última cena e começava a formar a roda.
Assim movimentávamos o cair da noite fria de um domingo de Junho na cidade de Paraty. Os moradores e visitantes paravam para assistir àquele ensaio de uma peça teatral, na verdade uma peça cortejo, que falava de história do Brasil, de literatura, de morte, com muita vida, música e dança; assim é a arte.
Andar sobre as pedras daquelas ruas históricas era o meu suplício... Meu caminhar, mesmo guiado pelos amigos, não fluía bem, os pés e os quadris doíam. Cada pedra de um tamanho, uma posição, uma mais ensaboada que a outra, informações que eu só conhecia ao dar o próximo passo, a cada pisada uma nova surpresa, um jogo constante de atenção, tato e equilíbrio. Por fim, até uma carona nos braços de um amigo ganhei, poupando-me de um bom trecho de briga com aquela bela herança histórica. “Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava asfaltar” eu cantava em pensamento, torcendo pra que nenhum morador tradicional da cidade me captasse as ondas telepáticas... esquece. A sorte era que agora, ali onde ensaiamos minha cena e o trecho restante da procissão não tinha pedras, pisávamos apenas em terra.
-Vamos para a ciranda? uma corista se animava, enquanto me conduzia e caminhávamos até o local da última cena, mais próximo do mar.
-Nem me lembro como se dança ciranda. Acho que eu iria mais atrapalhar que ajudar. eu dizia, negando o convite.
Ela então me mostrou um banco de madeira próximo da roda e se afastou. Apenas me sentei e me desprendi de minha mochila e uma voz conhecida me chamou:
-Vem, Sarinha, entra na ciranda!
-Eu não sei dançar ciranda! respondi sorrindo, louca de vontade de estar na roda.
Nunca fui de aceitar limites sugeridos por outras pessoas e nem por mim mesma; sei da minha limitação visual e do que ela implica na minha interação com o mundo, na minha maneira de aprender e de fazer coisas que todo mundo faz, e sempre acreditei em minhas capacidades e em alternativas se o modo convencional de aprender ou de fazer as coisas não me serve. Mas ali estávamos num ensaio geral e corrido, onde espera-se de todos pensamento rápido e ações precisas, e não haveria tempo para ainda me ensinarem qualquer coisa. Além disso, oficialmente eu nem integrava aquela cena. Besteira!
-A gente te ensina. respondeu outro dos meninos, pegando-me pela mão e me levando para a roda.
Do centro do grande círculo humano, a música, alma da ciranda, já lhe dava vida e ditava seu ritmo. Um de cada lado me dava a mão, e, seguindo o pulso da canção e as orientações dos dois rapazes, eu relembrava o passo simples da ciranda e me ajustava no andamento da rotação. É, até que não era tão difícil mesmo. Junto dos percussionistas no centro o cantor cantava os versos, e toda a roda o repetia. Eu já podia cantar tranqüilamente enquanto cirandava com alegria. De repente, tudo mudou... O compasso da música, que até então era contado com quatro tempos, agora teve acrescido um quinto tempo; e o passo simples da ciranda, que também pode ser contado com “um, dois, três e quatro” já não cabia mais na música. Que ciranda diferente! E eu, imagino que como qualquer outro cirandeiro desavisado, embananei-me. Prontamente os meus dois guias de ciranda foram me orientando com descrições e explicações do que mudava na dança. Demorei um pouco a me adaptar à mudança; mesmo pra quem tem conhecimento e prática de música, um compasso de cinco tempos não é tão fácil de ser assimilado, pois o corpo, até pelo ritmo do próprio coração e do caminhar, está naturalmente mais habituado aos compassos pares ou ternários. Todos ali podiam se orientar pela visão, acompanhando os movimentos de quem já sabia o novo passo, e eu precisava coordenar passo, palma no tempo certo, memória, roda girando e ouvido captando as informações que o diretor da peça, ao meu lado direito, passava-me, ao mesmo tempo em que orientava toda a roda com gritos que indicavam os momentos de transição do compasso de quatro tempos para o de cinco e vice-versa.
E a ciranda voltava ao seu andamento inicial, e tornava a voltar ao compasso diferente, e eu ia me acertando com passo, palma, pé e mão. E, com uma crescente alegria, rodava na roda, sentindo-me cada vez mais parte dela.
Agora o compasso era o tradicional até o fim; terminada a música de sua autoria, o cantor entoou cantos de ciranda que eu ouvi e cirandei quando criança; cantei junto, todos cantaram. Depois ele chamava a roda a responder seus gritos, e assim seguiam todos interagindo e girando na roda. Como é bom estar na roda! E pensar que eu quase não entrei nela... Eu, que ando por aí, em empresas, escolas e outros grupos, falando para pessoas de diferentes idades, níveis de escolaridade, estados do Brasil, sobre inclusão social de pessoas com deficiência, sobre como incluí-las e lidar com suas limitações sem esquecer de suas capacidades, levei uma lição de inclusão, porque eu mesma, por um momento, pensei que não fosse possível me incluir naquela roda. Aqueles meninos que nunca passaram por um treinamento ou uma capacitação para lidar com pessoas cegas ou com baixa visão nos lembram que a arte tem muito a ensinar, ela ajuda a abrir os corações, e os corações abertos abrem a roda pra quem quiser chegar. Sim, foi um ato tão simples e espontâneo; eles simplesmente chamaram mais alguém para a roda e atenderam as necessidades diferentes de aprendizado e integração desse alguém. E isto é a plena inclusão: incluir sem que isso seja cobrado ou fiscalizado, incluir sem enxergar barreiras para se adaptar às diferenças do outro. Pra eles isso pode nem ter sido esforço algum, tamanha a naturalidade ao incluírem, não só naquele momento, óbvio, afinal foram eles mesmos que me convidaram para estar na peça, mas pra mim fez toda a diferença, e faria pra qualquer outra pessoa que também sabe muito bem como é por tantas vezes ter sido deixada de fora das rodas. E eles nem imaginam, pois só eu sei, como foi bom estar naquela roda. O meu desejo, aliás, é que todo ser humano tenha a felicidade plena de sentir como é bom estar na roda; meu desejo é que todos os grupos aprendam a descomplicar a inclusão, a destemer a integração das diferenças, que aprendam que tudo é possível quando existe a disposição e os braços abertos, que entendam enfim que a roda é de todos, a roda que é a vida, o tempo, o relógio, o avanço, o abraço, o círculo, o circo, o palco, o globo, o planeta Terra, girando em sua constante viagem, carregando sua rica bagagem de imensa diversidade; diversidade de seres, de planta, de flores, de paisagens, de animais, de gente; gente de diversos tamanhos, diversas cores, diversos biotipos, jeitos, pensamentos e caminhos. Essa roda maior está há bilhões de anos nos ensinando e mostrando que a diversidade existe, e está aí; só não enxerga quem não quer.

6 comentários:

  1. Sara!
    Acabei de conhecer seu blog e a primeira coisa que leio é esse texto liindo que você escreveu e eu ainda nem sabia. Tomei a liberdade de mandar seu blog pra todo mundo da Sala Preta. Tenho certeza que todos vão ficar muito felizes, do jeitinho que eu fiquei. Com o coração batendo forte de saudade daquele dia em Paraty! Bjos amiga!

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  2. Eu estou completamente emocionado!!!!
    Esse texto já seria interessante, e envolvente mesmo se não conhecesse os provocadores da roda, e desse movimento, momento. Mas, sabendo que éramos nós que estavamos ali... que a energia que pulsava em mim dava as mãos para esse energia que pulsava em você. Eu li, relembrando cada passo desses que você deu, e que eu dei no mesmo dia! Você não imagina como me senti lendo tão sábias e bem escritas palavras. Talvez você não saiba da mesma forma que até agora eu não sei como você se sentiu naquele dia. O que despertou em você naquela hora, certamente desperta em mim agora.
    Continuo sendo seu fã!
    Um beijo no coração que pulsa em compassos pares ou ternários, e agora em cinco tempos.

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  3. Lindo isso, Sara! Viajei com você nessa lembrança... a descrição de sua experiência me ensina muita coisa. Acima de tudo, abrir a roda, dar as mãos e permitir-se participar da ciranda da vida.

    bjs

    Márcia Vhenina

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  4. Sara, lindo!
    Você tem a sensibilidade de me fazer chorar como uma mantega derretida. Seu texto me transportou para um tempo que não volta mais, pois toda a preparação e construção daquele espetáculo foi um trabalho de equipe muito afinado e nós nem nos demos conta de "incluir", apenas pensávamos em "agregar", trabalhar com pessoas que confiamos e amamos. Adorei muitíssimo trabalhar contigo e espeto que essa parceria seja bem duradoura!
    Um grande beijo em seu coração.
    Rafael Crooz
    .

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  5. Sara,
    Descobri seu espaço escrito agora. Já te conheço de longe, mas nunca tivemos oportunidade pra nos conhecermos melhor de perto. Eu estava na roda. Senti e sinto agora novamente meu coração em cinco tempos. A culpa é toda sua. Muito obrigada pelo maravilhoso texto, pela sua voz que encanta meus ouvidos, pela sua presença que traz uma sublime serenidade. Já era e agora, mais ainda sou sua fã.
    Um beijo e um abraço extremamente apertado.
    Jessica Zelma

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  6. Muito prazer!
    Eu também sou amante das artes.
    Meus parabéns!
    Showwwwwwwwwwww

    wwwjazzdiziaaminhaavo.blogspot.com

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