terça-feira, 20 de julho de 2010

Deficiência? Todo mundo tem!

Hoje vou contar a vocês uma das histórias mais apreciadas pelos públicos das palestras que ministro por aí. Uma daquelas histórias que os amigos sempre pedem pra gente contar de novo e de novo, como se fosse uma piada. É claro que, assim como uma piada, tem mais graça contada ao vivo, mas o negócio aqui é aproveitar a grande graça da palavra escrita para estimular a criatividade e a sensibilidade de vislumbrar cada detalhe descrito.
Estava eu em Belo Horizonte há alguns anos, participando de um festival internacional de artistas com deficiência. Em diversos pontos culturais da cidade apresentávamos nossa música, nossas danças, pinturas, peças teatrais e tantas outras lindas manifestações. A festa durou uma semana inteira, e numa noite em que não estava trabalhando, fui assistir a outros artistas. Um ônibus do evento saiu do hotel com uma galera, pessoas com todo tipo de deficiência, e ia parando e despejando os grupinhos nos diversos locais de shows e exposições. Por último ficou o Teatro Municipal, meu destino. E ao nos levantar, eu e minha mãe, percebemos que todos do grupo restante no ônibus eram cegos e que não havia ninguém do evento para nos ajudar. O motorista tinha pressa e logo nos despachou. Minha mãe, que enxerga, auxiliou o grupo no desembarque e ficamos parados todos na calçada resolvendo como organizaríamos a caminhadinha boa até o teatro, que ficava dentro de um parque. Eram cerca de dez pessoas cegas, eu com baixa visão e minha mãe, a salvadora da pátria. Só que ela era uma, com apenas dois braços. Como fazer para guiar onze ao mesmo tempo?
-Bom- eu sugeria à minha mãe –você leva metade e eu vou no seu rastro, levando a outra metade.
Assim fizemos: ela organizou uma pequena fila do seu lado direito, outra do esquerdo, feito tia da escola levando a turminha pra sala de aula. Eu fiz o mesmo, ofereci o braço pra um do lado direito, que foi seguido por mais dois ou três, ofereci o outro braço pra um do lado esquerdo e fui logo atrás da turma da minha mãe. Minha visão era pouca mas eu havia aprendido a aproveitá-la de maneira bem funcional, e mesmo com a pouca iluminação do parque, conseguia acompanhar a “mancha” de gente que se movia à minha frente. Fomos caminhando devagar, para facilitar a vida de todos, principalmente a minha. Eu olhava muito atenta para o chão à minha frente e à nossa volta, cuidadosa para que nenhum obstáculo em nossas laterais entrasse no caminho de alguém. Contudo, ainda sobrava atenção para um papinho com os colegas. Aliás, papo é uma coisa que cego adora! É incrível o som que um bando de cegos é capaz de produzir; e aquele bando ali, mesmo pequeno, mantinha o silêncio longe. Engrenei então num diálogo descontraído com o colega da direita. No meio da conversa, ouvi o colega da esquerda dizer:
-Nossa, você é tão bonita.
Agradeci. Claro, quem não enxerga tem suas maneiras de achar beleza no outro. Mais alguns passos, mais alguns dedos de prosa com o amigo da direita e ouvi uma nova intervenção vinda da esquerda:
-Você tem um corpinho legal.
Agradeci de novo, agora meio sem graça. Mas espera aí- pensei –esse cego ta vendo demais... Ele segurava apenas em meu braço, não ousou tocar nem encostar em nenhuma outra parte do meu corpo para ver com o tato, como uns ceguinhos por aí adoram fazer. Por que ele estava falando aquilo?
Estávamos quase chegando à porta do teatro e prossegui paciente, embora incomodada. Quando ouvi o próximo comentário do cidadão da esquerda, agora ainda mais ousado, estaquei.
-Para tudo- falei, e olhando bem para ele indaguei –Desculpa perguntar, mas qual é a sua deficiência?
E ele, sem me soltar o braço, olhou para baixo, deu um risinho curto de boca fechada e respondeu com a voz arrastada:
-Digamos que seja espiritual.
Só então compreendi, sentindo o cheiro de álcool e reparando que ele bambeava mais que joão bobo, que se tratava de uma criatura altamente alcoolizada, que simplesmente vira uma fila bacana e decidira pegar o bonde.
O pobre bebum do parque nem imagina que virou um personagem ilustre em minhas palestras, onde vem sempre reforçar aquela velha, e sempre necessária, lição dos trabalhos de sensibilização: deficiências todo mundo tem, aparentes ou não. E existem muitos outros tipos de limitações além da visual, da auditiva, da física e da intelectual. Ele, humildemente, reconheceu a sua.

4 comentários:

  1. HAHAHAAHAHAHAHAH!

    Gente, que história divertida! Morri de rir imaginando o trôpego andar no bonde certo - porque, como você diz, todos nós temos nossas deficiências e o brilhante da vida é aprendermos a superá-las.

    Beijo, minha amiga!

    Mara Vanessa

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  2. Sensacional...Às vezes nos esquecemos que também temos nossas deficiências...

    Bjks

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  3. Achei seu blog sem querer..e nem sou apologista de ler muito blogs, mas acho q nada acontece poracaso. Adorei esse primeiro post q li, porque vou ler os outros com certeza! Parabéns, Carol

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  4. estava comentado ontem com meu irmão, brasileiro adora fila, se ver uma se agrupando logo se joga, nem precisa saber pra que é e pra onde estar indo.. muito legal seu post.

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