Pergunta Idiota, Tolerância em Exercício 2
Como aqui
no Boca promessa é dívida, hoje compartilho com meus leitores queridos mais um
trechinho do acervo de perguntas idiotas, respostas malcriadas e outras pérolas
que venho colecionando ao longo dessa vida de “apagão”. Então lá vai,
abobrinhas que ouvi e respostas que nem sempre a elegância me permitiu dar:
Taxista
para em frente à minha casa pra me pegar e me vê sair sozinha do portão com
Izadora. Ele sai apavorado do carro, logo encontra a imagem de minha mãe lá no
alto na janela da varanda e troveja com ela:
-Ô
dona! Eu não sei o que fazer com ela não! Eu não sei pegar ela não! Ela vai machucar!
E eu,
andando com Izadora em direção à voz dele, rio e tento pedir-lhe calma, mas seu
pavor é tanto que ele parece não me ouvir; não ouve nem vê nada, e consigo achar
a porta do carro e entrar antes dele, enfim conseguindo vencê-lo falando mais
alto:
-Eu vou
te dizer o que fazer comigo: em primeiro lugar, fica calmo, eu não mordo.
Depois
de um riso tenso, ele relaxou um pouco, entrou no carro e conseguimos estabelecer
um diálogo durante o trajeto. Chegando ao destino, ele conseguiu até pegar no
meu braço e me conduzir, trêmulo, pela calçada da escola de dança.
Recepcionista
de um hotel em São Paulo durante o meu check in se dirigindo à moça que foi
apenas me deixar no hotel:
-O
quarto dela é no segundo andar. Ela sabe subir escada?
Não, só
sei descer. (respondo em pensamento)
-Sei
subir escada e sei falar também, pode perguntar pra mim. (essa sim eu falei)
Como
ela riu sem graça e passou a se comportar bem, o festival de pérolas parou por
aí. Mas neste caso a única pérola da pobre moça é tão carregada d significado
social que daria pra desenvolver uma tese de mestrado. Mas, como nós não temos tempo
pra isso e nem estamos fazendo mestrado, que tal brincar do jogo dos 7 erros? E
se duvidar tem mais de 7. Analisa comigo: “O quarto dela é no segundo andar.
Ela sabe subir escada?”
Erro 1: A escada. Pra começar, que
hotel bandido é esse que não tem um elevador? Ali ninguém ouviu falar em
acessibilidade?
Erro 2: “ela sabe subir escada” Será
que ninguém ensinou pra ela a diferença entre saber e conseguir ou ela acha que
a cegueira desce e compromete também as pernas?
Erro 3: “sabe subir” Será que,
unindo a teoria de que pra descer todo santo ajuda à crença de que santos devem
estar sempre perto de pessoas cegas, porque cegos precisam de um milagre e milagre
é coisa de santo, a moça realmente acreditava que pra mim só seria possível
descer e não subir as escadas?
Erro 4: “ela” A moça realmente
achou que minha acompanhante, que eu mal conhecia e que nem ia ficar no hotel
comigo, sabia mais sobre mim que eu mesma ou ela no fundo no fundo sabia que
sua pergunta era tão chocante que eu não suportaria ouvi-la direcionada
diretamente a mim?
Erro 5: Pra onde foi o
treinamento de atendimento a pessoas com deficiência que seu chefe deveria ter
proporcionado a todos os funcionários do hotel?
Erro 6: (E este é meu) por que eu
não respondi o que pensei responder? Acho que ela nunca mais pensaria em
perguntar o mesmo pra outro cego, e teria sido mais divertido...
Erro 7- Me ajuda aí! Brincar sozinha não tem graça... Se
achar o sétimo erro comenta e conta pra gente!
Funcionária
de um certo grande banco ao preencher um cadastro de controle da minha conta
corrente, provavelmente no item “escolaridade”:
-Você
é alfabetizada?
Não,
não. Nunca estudei, não trabalho, e inclusive abri uma conta aqui pra depositar
as moedinhas que ganho no semáforo. Você aceita depósito em moeda, não aceita?
(Essa foi só em pensamento. Na hora fiquei tão chocada que não consegui
elaborar verbalmente tudo isso.)
E
depois de eu dizer, chocada, um “claro”, ela insistiu na subestima:
-Mas
você fez até que série? Você se lembra assim mais ou menos?
Por
favor, alguém me traz um calmante... Essa bruaca confunde cegueira com falta de
memória ou o quê? (em pensamentos espumantes de raiva)
Funcionário
de empresa aérea me conduzindo para o embarque após já ter dado vários furos comigo
durante o check in:
-Agora
no portão de embarque pega na sua bolsa um dos papeis que te dei, aquele rosa.
Ah,
claro, o rosa... Moço, não serve o preto?
Só tô vendo papel preto aqui, aliás tô vendo tudo preto. Ah meu Deus, o que
está acontecendo comigo? Me chamem um médico!!! (em pensamentos gargalhantes)
Eu
atravessava uma rua com uma amiga e inacreditavelmente no meio da rua (não
perto de uma calçada, não perto da outra, mas exatamente no meio da rua) um
senhor muito simples e com carregado e simpático sotaque mineiro para e diz à
minha amiga:
-Óia,
leva ela lá em Minas que lá no interior tem um peixe que ocê abre o fígado
dele, pega o óleo, pinga no olho e ela vai ver tudinho!
Entre
dar atenção a ele e ao ônibus que vinha em nossa direção, só consegui dizer:
-Mas
moço, eu sou vegetariana!
E ele,
voltando a andar e olhando pra trás, pra ainda nos encarar, insistia:
-Vai
lá, pesca no rio, abre o fígado dele e pinga o óleo no olho que ocê vai ver
tudinho!
Terminamos
de atravessar a rua, entre a curiosidade e o riso, e ele, já do outro lado da
rua, ainda acrescentou:
-Eu num
sei o nome do peixe não, mas ocês procura lá o peixe que cura as vista!
Esta
próxima faz sucesso contada ao vivo, por aqui não sei como pode funcionar, mas
vamos lá e fica também a promessa de contar ao vivo pra vocês na primeira
oportunidade.
Senhora
japonesa (mas dessas bem bem bem japa, do tipo que está no Brasil há 50 anos e
nunca aprendeu o português) viajando ao meu lado de Resende até São Paulo. Vale
destacar que justo naquele dia eu precisava de verdade dormir na viagem. Mas
ela, pelo jeito, precisava de verdade matar sua curiosidade... Talvez ela tenha
esperado sua vida inteira pra entrevistar uma pessoa cega, e a sorteada fui
eu... Pra simplificar, imaginem antes de cada fala dela uma boa cutucada em meu
braço; e imaginem também Uma voz abrutalhada e num nível de volume que atendia
a todos os passageiros do ônibus... Bom, agora com a imaginação preparada,
acompanhem a entrevista referência em polidez e discrição:
Japa: Você cega nascença?
Eu, falando baixinho: Não exatamente, eu enxergava um pouco,
depois perdi a visão.
Japa, condoída: Áiaaah...
Pausa
pra reflexão, e elaboração da próxima e rebuscada pergunta.
Japa: Mas você enxerga poquinho,
né?
Eu: Não, não, não enxergo nada.
Japa: Nada nada? Áiaaah...
Mais uma
pausa, que aproveitei pra virar a cabeça pro outro lado, na ilusão de cochilar
um pouco.
Japa: Mas você viajar sôzinha sôzinha?
Eu: É, tem que ser.
Japa: Áiaaah...
Outra
pausa.
Japa: Você passear São Paulo?
Eu: Não, vou trabalhar.
Japa, mais chocada que nunca: Mas
trabalha?!... Áiaaaaah!
E assim
seguimos até São Paulo, numa tranquila viagem de 5 horas de cutucadas e gritos
ninja.
Depois
dessa, só me resta parar por aqui. Tenho ainda umas das boas pra compartilhar
com vocês, mas é que haja estômago pra tanta abobrinha assim de uma só vez...
Num próximo conto mais.
De novo,
meus amigos, é importante lembrar que o papel dos mais informados é sempre informar,
que parte da nossa missão enquanto pessoas com deficiência e pessoas que
convivem com a deficiência de alguma forma é aproveitar cada oportunidade pra
informar, com paciência, e reivindicar, pra que situações como essas acima
sejam cada vez menos frequentes até desaparecerem da nossa sociedade. Mas... enquanto
elas não desaparecem, a gente continua informando, e rindo um pouquinho que é bom
demais... ;)
Só rindo mesmo é muita ignorância! Não sei por que as pessoas se espantam tanto com você ter estudado, trabalhar, viajar sozinha. Admiro suas conquistas e seu bom humor, aproveite aí em Londres! Bjs Giselle
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