Talvez
já estivesse no sangue, em algum gene, em algum impulso do fundo da alma. Antes
mesmo de aprender a andar, e ainda sem nada enxergar, eu pulava o berço.
Ninguém sabia como, ninguém nunca viu; quando viam, eu já estava engatinhando
no meio do quarto, feliz por ter me libertado. Ninguém viu também como, um belo
dia da mesma época, fui parar no meio da escada sem corrimão que subia para o
quintal. Sem falar das proezas, agora já maiorzinha e enxergando um pouco, em
cima das árvores, brinquedos altos do parquinho da escola, camas elásticas e
barras de exercícios nas quais minhas coleguinhas que praticavam ginástica
olímpica, atividade que eu sonhava fazer mas não era recomendado, ensinavam-me
a dar cambalhotas, pra frente e pra trás.
O tempo passou, esses impulsos aparentemente infantis foram adormecendo, ou se manifestando em forma de coragem pra sair pela vida. Mas a vontade de “voar, voar, subir, subir” continuava aqui, e quando assisti a um espetáculo de circo que envolvia pessoas com deficiência, em São Paulo, logo busquei meios de me incluir ali. Só que o grupo ainda não tinha ninguém com deficiência visual, e talvez tenha preferido não arriscar. Desconheço os motivos, mas as portas não se abriram. Anos depois, e agora vejo que na época certa, as portas de outro picadeiro se abriram pra mim. Despretensiosamente, e na verdade como um capricho, uma expressão de raiva transformada em movimentos, eu dançava numa mostra de artes no nordeste. Eu era convidada apenas para cantar, mas inventei de dançar também, uma dança do ventre diferente, onde a Izadora era minha parceira de dança, representando a bengala da tradicional dança árabe, bengala que simboliza a força feminina, a mulher guerreira. (link pro vídeo da dança: https://www.youtube.com/watch?v=c4doezLNhV8 ) Por esses sincronismos do universo, estava na mesma mostra uma antiga conhecida, a dançarina Viviane Macedo, que estava procurando uma pessoa cega pra completar um grupo num novo projeto de circo. Bom, foi assim então que fui parar no circo Crescer e Viver, no Rio de Janeiro, que montava o espetáculo “Belonging”, em parceria com a cia. inglesa de teatro e circo Graeae.
O
primeiro dia no circo era tão carregado de alegria, expectativa e curiosidade
que nem me lembro de muitos detalhes; lembro-me de explorar trapézio e lira e
fazer mil perguntas sobre eles e não me interessar muito pelos malabares ou
outras modalidades que não me tirariam do chão... E o mais importante que me
lembro: naquele dia conheci meu primeiro mestre de aéreos, o Milton Lopes, um
artista de Cabo Verde, simpático e talentosíssimo que já trabalhava com circo em
Londres havia alguns anos e que tem uma deficiência em uma das mãos. Ele nem
chegou a me ensinar tantos truques assim, pois logo teve que retornar a seu
país, mas as experiências que ele compartilhava comigo e suas considerações
filosóficas e poéticas sobre o circo, contadas sempre com sua voz serena,
inspiraram-me segurança e coragem pra continuar e passar por cima dos impulsos
de desistência, mesmo quando o primeiro calo das mãos arrebentou, quando a
curva da perna roxeou como quem toma uma surra, quando todos os músculos do
corpo doeram e o primeiro sinal de tendinite no ombro apareceu.
Certa
noite eu sonhei que estava no circo e que era meu dia de batismo. Eu estava
sentada numa plataforma muito alta e tinha de pular dali no meio do picadeiro,
sem rede, sem colchão nem nada. Todos aguardavam e me olhavam lá de baixo. Como
em todo sonho eu posso ver, eu olhava lá pra baixo e a altura me fez paralisar
de medo, e eu fiquei ali, até acordar, apavorada. Naquela manhã fui pro circo e
descobri que logo naquele dia todos os alunos deveriam mostrar um número aos
diretores e a todo o grupo. Assustada, fui reclamar com o Milton, argumentando
que eu ainda não tinha um número pronto, que ainda não tinha segurança pra
executar sozinha o pouco que havia aprendido. E parece que meu sonho estava
estampado em meu rosto quando ele respondeu: “Então apresente o que você tem e
nos brinde com o seu medo.” Uma emoção muito forte me bateu, como sempre me
bate de novo quando me lembro, e ali entendi: no circo ou na vida, o medo vai
sempre andar junto da coragem, e a beleza está em ficar amiga dele, porque ele
é humano, assim como nós.
Numa
corrida contra o tempo, porque deveríamos adquirir condicionamento e
experiência para deixar pronto um espetáculo em breve, passei pelas mãos de
alguns outros queridos mestres (Lurian, Vânderson, Dadá, Tina, Sarinha, Nina),
todos aprendendo na prática como ensinar performance aérea a uma pessoa que não
enxerga. E, entre sustos, tombinhos, entraves, descobertas e muita
persistência, fomos aprendendo todos juntos. Tocar com as mãos os professores e
colegas em suas performances, além da experiência que eu já tinha com a dança, foi
o que me possibilitou me desenvolver na lira. Ah, é claro, sem esquecer ainda
do mais importante: acreditar, e ter ao meu redor pessoas que também
acreditavam.
Eu
teria história pra mais de metro pra contar a vocês sobre minha experiência no
circo, além das histórias e ensinamentos que ainda vou viver ali, pois estou só
começando! Pra fechar, deixo então pra vocês dois trechinhos do nosso
espetáculo “Belonging” e uma breve tentativa de descrição da minha sensação na
lira durante o espetáculo:
Quando
dou o impulso com o pé no chão para fazer girar a lira e ela começa a subir, é
o rompimento, com o chão, com o mundo real, com o concreto, porque agora a lira
sobe, sobe, girando rápido, e continua subindo, até chegar numa altura
suficiente. O giro constante e a força dele em meu corpo trazem a tontura. Do
enjoo já me livrei previamente com uma homeopatia contra enjoo que tomo antes
do espetáculo começar. A música parece rodar em torno. O chão não existe. A
única coisa palpável e firme que tenho ao meu alcance é a lira, e agora somos
só eu e ela. Começo meus movimentos, corpo e mente estão muito acesos, atentos.
Minha vida está em minhas mãos. Não consigo pensar em nada. Já nem ouço a
música, só sinto a música, sou a música, sou a lira, somos as três uma coisa
só, interligadas e interdependentes; minha coreografia tem que acompanhar o
tempo da música, meu corpo tem que acompanhar o giro da lira, e a lira é parte
do meu corpo, pois não podemos perder o contato um só segundo, seja pelas mãos,
pelas pernas, pelo tronco. A extrema concentração, um fluxo único de energia, a
tontura, a ausência de chão e de luz, tudo isso me leva a um transe consciente de
liberdade. Sim, é ser livre, é estar cara a cara com o medo e poder dizer na
cara dele quem é que manda aqui. É não ter chão pra tatear ou tropeçar, é não
ter frente pra me preocupar, já que estou girando e qualquer frente é frente,
não tenho que me preocupar se estou de lado ou de costas para a plateia. É ser
livre porque é dançar e voar ao mesmo tempo. É ser livre porque é ser e estar,
integralmente, no aqui e no agora.
Parabéns!
ResponderExcluirOi Sara... Parabens minha querida amiga e irma. Beijos e abraço bem bem apertado de longe mais sempre pertinho do coraçao.
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