domingo, 4 de setembro de 2011

Uns Pobres Miseráveis

Paramos em frente à rodoviária à espera do ônibus frescão, apelido muito carinhoso até, dado por conta da temperatura quase polar estabelecida dentro do veículo, provavelmente pra fazer os gringos esquecerem por alguns instantes o calor quase infernal do Rio de Janeiro. Bom, exageros à parte, vamos ao que interessa: não sei dizer ao certo qual seria o interesse do homem pobre e negro que nos abordou, como é comum naquela região. Ele chegou com tudo, cheio de si, com uma gentileza quase intimidadora: -Senhoras, primeiramente bom dia!
Respondemos educadamente e eu fiquei esperando o resto, a continuação da conhecida ladainha que vem cutucar nossa compaixão e piedade, ladainha que não veio... Para mim, apenas o silêncio e uma interrogação... Por alguns segundos, de um tudo passou pela minha cabeça por não saber o que acontecia. Mas logo, aplacando meu desassossego, minha mãe, quem me acompanhava, pôde explicar a súbita mudança de ideia do homem pedinte. O feitiço contra o feiticeiro. Ele veio pronto pra jogar sobre nós o feitiço da dó; o problema foi que ele me viu, viu a Izadora em minhas mãos, olhou meus olhos. E aí, nem mais uma palavra, apenas uma rápida erguida de mão, sem jeito, talvez para se despedir, talvez para se desculpar, e sumiu entre as pessoas e os veículos. Então tá, moço... Parece que o feitiço da dó se voltou contra ele próprio. De repente, como num passe de mágica, a miserável era eu! Só faltou ele dividir comigo o que já havia arrecadado...
O que será que passa pela cabeça das pessoas? Certa vez eu e minha amiga Tábata Contri chegávamos de carro ao estacionamento de um shopping em sampa. Ela estacionou, abriu a porta e, com naturalidade, começou a montar sua cadeira de rodas. O cobrador logo se aproximou oferecendo ajuda. Ouvi em sua voz algo de... comoção. E eu podia ler sobre a cabeça dele o balãozinho: “Puxa, uma moça tão linda, tão nova, tão simpática, numa cadeira de rodas... Ah, meu Deus...” Enquanto ele a ajudava, armei Izadora e saí do outro lado do carro. Agora não ouvi nenhuma piedade em sua voz, mesmo porque neste momento nem voz ele tinha, ficou mudo. Eu podia ler um balãozinho ainda mais condoído sobre sua cabeça e podia imaginar sua cara, de olhos arregalados e boca aberta. Por essa ele não esperava... Uma loira linda, jovem, e cadeirante já lhe apertara o coração; e ainda junto uma outra moça jovem, bonita (modéstia à parte ;D) e cega? Aí já era demais para sua compaixão. E ele não conseguiria suportar toda aquela “dor” se não tentasse fazer algo por nós. Mas fazer o quê?
-Olha- dizia ele, quando finalmente nos encontramos eu e Tábata em frente ao carro e peguei nos seguradores de sua cadeira –eu não vou cobrar o estacionamento de vocês não, viu?
-Mas por quê, moço? ela perguntou surpresa.
-Não, não, não, não vou cobrar de vocês duas.
-Mas por quê, moço?- ela insistia já rindo –Assim eu vou achar que é discriminação sua.
Sem jeito, sem saber se ria, se chorava, ele deu uma pensadinha e decidiu:
-Tudo bem, então só metade.
-Nós rimos e finalmente concordamos:
-Combinado então, só metade.
Éramos duas amigas indo passear e gastar num shopping sábado à tarde, e só podíamos pagar metade do estacionamento... Legal, se a regra se estendesse para todas as lojas do shopping...
A verdade é que enquanto houverem as almas equivocadas que se acomodam numa “situação menos favorecida” e estimulam a piedade alheia pra sobreviver, e enquanto houverem no país as leis paternalistas, nós, os “mal-acabados”, teremos sempre nossos dias de pobres miseráveis. E aí, ficam as histórias pra contar...

3 comentários:

  1. E aí, ficam as histórias pra contar...

    Triste fato!

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  2. Hahahahahaha... é nossa triste realidade, mas eu t imagino contando ao vivo tudo isso com graça e risadas! O melhor mesmo é rir! Adorei o texto. bjocas :*

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  3. É Sara, da próxima vez pega a grana do pedinte...e aceite a gentileza do estacionamento gratis...rsrsrsrs

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