Nasci
num coral grande. Não, um coro de anjos celestiais não cantou por minha chegada
ao mundo. Falo de um coral terreno, que é minha família paterna, com uma avó
sorridente (meu avô falecera 10 dias antes, provavelmente pra fiscalizar lá de
cima todos os trâmites espirituais de meu nascimento, como bom fiscal que era),
onze tios (com meu pai, somando 12 irmãos) e quase trinta primos, só de
primeiro grau. Em outro ponto da cidade, ao saber de meu nascimento, um dos
onze tios compunha ao violão (que provavelmente já estava em seus braços) uma
música com meu nome.
Fosse
onde fosse e por qual motivo fosse, cada reunião de família virava fatalmente
uma festa. Natal, aniversários, ou simplesmente vontade de cantar. Sim, um dos
melhores momentos era sempre a hora da cantoria. Acompanhadas por violão,
baixo, teclado, palmas, pandeirola, copos, e qualquer outra coisa que gerasse
som, vozes graves, vozes médias, vozes agudas, vozes fortes e vozes tímidas;
muitas vozes, e sempre com direito a segundas e terceiras vozes. Harmonia nem
sempre perfeita, nem todos sempre afinados, como em toda família, mas aquelas
notas, aquelas músicas, aqueles ritmos, mesmo que eu não quisesse, entrariam
por todos os meus sentidos durante todo o meu crescimento. Se eu estivesse
catando goiaba vermelha no quintal da vó, ou montando teatrinho com uma dezena
de primos, ou experimentando umas notas no piano da tia mais nova, ou
aprontando com o primo adorado e tomando chamada da vó, eu recebia toda aquela
música.
Com
meus doze anos, pela primeira vez vi aquele grande coral se esmorecer. Era hora
da vó Joaninha partir. E, após a dolorosa despedida física, fomos todos pra
casa dela e, fora sua difícil ausência e a cantoria, tinha a costumeira
comilança, as piadas de uma família de humor incorrigível e as crianças
correndo por toda parte. Um priminho pequeno, ao voltar pra casa com a família,
comentou alegre com a mãe: “A festa da vó estava tão legal!” Por outro lado, o
tio mais novo gerava uma poesia dedicada à mãe. E tempos depois, meu pai
transformava a saudade em uma nova canção. Assim o grande coral demonstrava
mais uma vez a capacidade de transformar dor e alegria em arte.
Não
demorou muito pra que o grande coral voltasse à ativa, mesmo quando ainda doía
a falta da voz mais doce. E agora eu também já era uma voz cantante no coro. Muitos
primos, em geral os mais velhos, já faziam parte cantante do coro também, assim
como, ao longo do tempo, outros instrumentos foram adicionados à banda, como
violino, violoncelo, bateria e até representantes exóticos da música
internacional, como o kazoo, o hulusi e o ukulele.
Da
mesma forma que crescia a diversidade musical, crescia também a diversidade de
sorrisos, de cores, de personalidades, pois a minha geração de primos agora
tinha seus filhos, e a família crescia, e continua crescendo... E, seguindo a
mesma lei da vida, os tios começaram a diminuir; de onze, agora são nove, desde
quando, em 2012, o primeiro foi embora, o tio Luiz, furando a fila por idade. Aliás,
nada surpreendente em se tratando dele, que era um dos piores da família de
humor incorrigível. Dentre as tantas que ele aprontou, contam que certa vez ele
entrou no banco todo torto e simulando uma grande dificuldade na fala só pra
ser atendido na frente. Bom, nem preciso dizer que no velório dele era uma
alternância de lágrimas e gargalhadas abafadas, quando alguém vinha contar
alguma outra que ele tinha aprontado e que nunca chegara aos nossos ouvidos. E
o grande coral, talvez mais maduro, até conseguiu cantar desta vez. Mas eu não,
não consegui conciliar lágrimas e canto.
Na
última sexta-feira, foi embora mais um tio, o tio Manoel. Lá estava de novo o
grande coro, com as vozes graves e agudas, segundas e terceiras vozes automáticas
(elas simplesmente vêm). E eu, talvez um pouco mais madura, até consegui cantar
também. Como sempre, lágrimas, risadas ao ouvir as tantas que também aprontou o
tio da vez, e uma constatação difícil: É, o grande coral original está
diminuindo... E que pena que a gente só percebe o “tarde demais” normalmente quando já é tarde demais, pra dizer a todos
eles o quanto eu os amo, o quanto me importa cada um e o quanto suas qualidades
afetam minha personalidade. E o grande coral, não tem escapatória, já está
perpetuado no sangue, na musicalidade e nas vozes dos filhos, netos, bisnetos
(bem como o humor incorrigível e a disposição pra aprontar...).
Depois
da despedida física, e de eu ter ouvido que devo ser a última da família a
morrer, pra poder cantar no funeral de todos, mais cantoria, mais risadas e
causos, a certeza de que devemos logo registrar num livro as histórias pra mais
de metro dessa família tão peculiar, e os planos de cada um para o próprio
funeral. Como em algum lugar do oriente, em geral todos ali declaram querer
festa, cantoria e risadas nesse momento tão natural, e eu também.
PS: A outra metade de minha origem, a família da mamãe, aguarde
sua vez...
Sara Bentes
Na foto abaixo, a vovó Joana com uma renca de netos, mas
ainda faltando muitos que nasceram depois. Difícil uma foto com todos os tios e
primos, até porque não caberia numa foto só... ;)

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