quarta-feira, 14 de julho de 2010

Boas ou Más Notícias?

Depois de três meses de ensaios, muita ralação e muita alegria, lá estávamos nós, almoçando no camarim, prestes a levar para o palco mais charmoso da cidade um espetáculo de ricos arranjos musicais, letras cheias de poesia e pureza e idéias harmoniosas para presentear qualquer criança, pequena ou grande, que ali chegasse. Vindo cada um de seus diferentes universos musicais e profissionais, era a estréia de todos nós na música infantil, e o entusiasmo era geral.
Veio então a notícia: o canal de TV que cobriria o show e chamaria público para a apresentação seguinte 3 dias depois acabara de cancelar a ida porque o menino de 3 anos espancado pelo padrasto acabara de falecer. Estremeci, e foi difícil continuar a comer. Num canto da cidade um grupo de artistas terminava de se preparar para encantar a vida de várias crianças, enquanto de outro lado, num hospital público, um pequenino, de fêmur fraturado, pulmão perfurado e outras atrocidades que não vale a pena lembrar, morria, sem arte, sem música, sem idéias harmoniosas, sem encanto algum, sem oportunidade.
Na mesma semana ainda estava em alta nos jornais o caso da procuradora Vera Lúcia, o que trouxe à tona em toda a imprensa e na memória da gente inúmeros outros casos semelhantes, ou piores, noticiados anteriormente. O que não pode é a gente se anestesiar com notícias como essas, ou melhor, continuar se anestesiando. Eu já não estava nem aí para a ausência da TV que divulgaria nosso show, a tristeza e a indignação diante do desfecho da história escabrosa eram maiores. Com tudo, o contraste daquele momento pré-show me falava claramente sobre duas coisas: escolha e a falta dela. Um canal de TV acabara de escolher redirecionar sua equipe para a porta de um hospital para, durante a tarde inteira, registrar o choro de familiares e conhecidos, o depoimento de um médico impotente diante da cena, a sentença do juiz ou delegado. No domingo haveria um espetáculo musical para as crianças da cidade, preparado com muita dedicação, amor e comprometimento com a educação e com a diversidade. Mas o que isso importa diante do que acabara de acontecer? Claro, acontecimentos relevantes, sejam positivos ou negativos, devem ser levados ao conhecimento da população. Mas quanta atenção nossos jornais, telejornais e revistas estão dando aos fatos negativos? No mundo coexistem notícias boas e ruins, e se olharmos o mundo pelos olhos da TV aberta, nossa, o mundo ta perdido mesmo, fica difícil lembrar que coisas maravilhosas também estão acontecendo. Certamente viveríamos menos estressados e mais esperançosos se no mínimo fosse acolhida numa mesma edição de um telejornal a mesma quantidade de notícias boas e notícias ruins. Enquanto ainda não é assim, nós é que escolhemos ser ou não reféns dos noticiários, que escolhem o que nos deixar saber, escolhem noticiar apenas o que eles consideram relevante. Além disso, noticiar é uma coisa, explorar a dor do outro e martelar sempre a mesma tecla é outra. Nós, adultos, temos essa consciência e somos capazes de identificar essas diferentes abordagens e, a partir disso, temos a liberdade de escolher o que queremos para nós, mas nossas crianças não escolhem, elas aceitam, e assimilam, o que nós, adultos, apresentamos a elas, as histórias escabrosas que acompanhamos na TV, as músicas de teor destrutivo que ouvimos, os programas violentos que vemos, os exemplos que damos. E aí é que vem a falta de escolha. Naquela noite quantas e quantas casas seriam bombardeadas com a matéria, provavelmente comprida, do enteado espancado e morto, bem na hora do jantar, e nenhuma criança daquelas casas teria a oportunidade de ficar sabendo que um grupo de artistas pré-estreava naquele dia um espetáculo de som, luz e idéias edificantes para elas e seus pais. Crianças e adultos estavam em casa, jantando e conversando, quando deu na TV a notícia, feito uma corriqueira música de fundo para a refeição diária. Certamente algumas crianças sentiram medo, outras não sentiram nada, porque já estão acostumadas a ver e ouvir histórias como aquelas na TV. É uma pena, o que estamos permitindo para nossas crianças? O que estamos escolhendo para elas e para nós? O que preferimos que ocupe nossa sala, nossa mente, nossas conversas, nossas vidas: boas ou más notícias? Mais fundamental ainda, o que preferimos ser e produzir no mundo: boas ou más notícias? Nós, que acreditamos e trabalhamos na arte, vamos continuar tratando de produzir boas notícias, veiculadas ou não pela mídia. E vamos continuar trabalhando e torcendo para que ela, a arte, entre na vida de crianças como aquele garotinho de destino interrompido, que entre nas famílias, que ela entre na vida de todas as crianças do mundo, e que assim todas elas cresçam pessoas capazes de produzir muito mais boas do que más notícias e histórias. Vamos escolher melhor o que permitimos entrar e marcar a infância de nossas crianças.

Um comentário:

  1. Sara, li este texto no Volta Cultural e gostaria de parabenizá-la. Além do assunto ser importante, sua sensibilidade e estilo são encantandores. Passarei a lê-la com mais frequência. Aproveito para pedir sua autorização para usar este texto em minhas aulas (todo semestre escolho novos textos para usar em minhas apostilas de Língua Portuguesa). É possível?
    Grande abraço,
    Fábio Elionar (f.elionar@gmail.com)

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