segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Sem Perder o Foco

Sara e Rafaela Sessenta, intérprete de libras, em gravação no estudio do Telelibras.
Entrevista marcada. Você se programa, prepara seu ambiente, pensa no que vai dizer sobre seu trabalho ou sua instituição, o que precisa divulgar, e enfim chegou a hora, a equipe do telejornal chega, com cinegrafista, diretora, intérprete de Libras e... uma repórter que não enxerga? Como assim? Aí você pensa que se enganou, ou que se esqueceu que na verdade a entrevista era para a rádio, e não para a televisão, afinal repórteres e apresentadores cegos trabalham em rádio, não na televisão. Mas espera aí, tem um cinegrafista na equipe; então é isso mesmo: televisão. E o entrevistado se faz mil perguntas em pensamento: “Mas como vou falar olhando pra ela sendo que ela não me vê? Como ela vai saber onde é minha boca pra botar o microfone pra mim? Como ela vai ler o TP na hora de apresentar o jornal? Como ela faz pra olhar para a câmera se ela não vê?” A surpresa e as dúvidas são comuns entre as pessoas que me vêem chegar com o microfone do Telelibras na mão para entrevistá-las. Pois é, essa repórter e apresentadora sou eu, então não há pessoa mais indicada pra contar pra vocês uns segredinhos e revelar como tudo isso pode funcionar. Vamos lá!
Há mais de 3 anos eu era apresentada ao Telelibras (botar link pro texto sobre o telelibras no blog), como já contei aqui. Eu tinha baixa visão e entrei no telejornal como repórter especial, gravando externas na rua, entrevistando pessoas interessantes e dando dicas de cultura, cidadania, acessibilidade, enquanto as matérias de estúdio eram gravadas por jornalistas sem deficiência. Pra mim era fácil seguir a luz da câmera, principalmente em ambientes mais escuros, onde ela se destacava. Direcionar o microfone para os entrevistados também era moleza. Papel escrito pra me orientar quanto as informações do entrevistado já não me servia, mas memorizar pra mim nunca foi problema, então eu decorava tudo. Coisa de um ano depois, fui promovida a apresentadora, inaugurando a presença de apresentadores com deficiência também no estúdio do Telelibras. Bom, agora as matérias eram maiores e a linguagem mais formal, nada de improviso, os jornalistas liam os textos todos no TP. Sem problemas, exercito mais um pouquinho a memória e levo meus textos decorados. Assim fiz por um bom tempo. Só que o jornal foi crescendo e a quantidade de textos por jornalista aumentando; e aí eu precisava escrever meus cinco ou seis textos, mandar para a revisão, receber os textos de volta, fazer os ajustes solicitados, e acabava me sobrando muito pouco tempo pra estudar e decorar tudo aquilo. O Telelibras ainda não é um telejornal diário, e veiculamos notícias frias, por isso gravamos num mesmo dia vários textos de uma vez, pra ir soltando aos poucos. Então, gravar seis textos decorados, um atrás do outro, começou a me embananar.
Um belo dia, em casa, veio a idéia, que não sei por que não veio antes: E se eu aproveitar a técnica que já uso em casa informalmente há anos? Desde que comecei a usar o computador, sempre com os leitores de tela, lá nos meus 12 anos, brinco de ponto eletrônico, ou seja, ouço a voz sintetizada aqui do computador lendo um texto e falo em delay, como um eco, reproduzindo em voz alta exatamente o que acabei de ouvir no fone de ouvido um segundo atrás. Sempre achei tão bonito uma pessoa lendo pra outra; e eu, como não podia ler com os olhos, fui me acostumando a este método quando queria ter o gostinho de ler em voz alta pra alguém. Os sintetizadores de voz podem ter a velocidade, volume e entonação ajustados a gosto do freguês, então configurei o moço que mora dentro do meu computador num ritmo confortável de acompanhar e fiz o teste. Eu havia feito algo parecido uma vez, quando fui mestre de cerimônias de um evento cujo roteiro não tinha ficado pronto a tempo de eu decorar. Então uma pessoa ficou nos bastidores narrando por um radinho Nextel o que eu deveria falar. Mas agora, no Telelibras, eu ouviria uma voz sintética. Como ouvir uma voz completamente robotizada e narrar com entonação humana? Nessa vida tudo é prática, e com o tempo fui me ajustando e aprendendo a quebrar a frieza e o ritmo retilíneo do amigo falante aqui.
Tudo foi ficando prático e fácil, mas aí veio o “apagão”, e com ele novos desafios... Para a solução do TP nada mudou, até hoje, o fone de ouvido, o moço que mora dentro do meu computador e, claro, o computador, formam meu ponto eletrônico improvisado e são meus companheiros inseparáveis de estúdio. Mas agora não tinha mais como seguir a luz da câmera pra saber onde ela estava, agora direcionar o microfone para o entrevistado no escuro já pareceu impossível. Bom, pelo menos a espuminha que encapa o microfone aliviaria uma possível nocauteada na boca do pobre do entrevistado... :) Nós do Telelibras nunca perdemos as esperanças nem o bom humor, e em momento algum pensamos em desistir, nem da nossa causa coletiva e nem da superação de cada um do grupo; se ninguém nunca ensinou pra gente o melhor método de tornar viável o trabalho de uma repórter e apresentadora cega, a gente descobre! No começo era aterrorizante a sensação de olhar para um ponto fixo no nada sem nenhuma referência de luz ou de som, e enquanto ainda não inventam uma câmera com sinal sonoro, para os treze bilhões de apresentadores cegos mundo a fora se orientarem, o jeito era ficar de estátua, mexendo só a boca, pra não sair da direção que a voz do cinegrafista tinha me apontado antes de começar a gravar. Mas aí eu precisava virar para o lado do entrevistado e quando eu voltava a olhar a câmera... cadê a câmera? Era impossível voltar a olhar para o mesmo ponto, e aí eu concluía a matéria direcionada pra janela, pro cristo redentor, pro Evereste, pra tudo, menos para a câmera. Sugeri então que o cinegrafista desse estalinhos de leve com os dedos abaixo da lente da câmera quando eu estivesse para desviar o olhar dela, mas nada feito, o microfone é muito potente e no estúdio silencioso capta tudo! Já fora do estúdio, nos locais sempre barulhentos onde gravamos, meu ouvido é que não capta nada... Pensemos numa outra solução. Um belo dia ela veio, durante uma gravação de estúdio, trazida pelo Roger Souza, editor e um dos cinegrafistas do Telelibras. Ele posicionou meu pé direito no chão de modo a apontar exatamente para a reta da câmera, e aí, sempre que eu tiver dúvidas de para onde focar o olhar, concentro a atenção na ponta do meu pé e retomo a referência. É como se meu pé apontasse para a base de um poste imaginário, eu visualizo na mente este poste e direciono o olhar para um ponto dele na altura do meu rosto. Sim, é um trabalho de consciência corporal e concentração intensa, e bastante fácil quando se deve conciliar com a atenção no fone de ouvido, na entonação, na respiração, no gestual, na narração e, se sobrar fôlego, na notícia.
Bom, mais um caso resolvido. Agora ainda faltava descobrir como abordar o entrevistado sem golpeá-lo com o microfone, sem olhar para o peito no lugar do rosto, sem dar nenhum furo. A solução veio naturalmente, e pode até soar simpática. Antes da entrevista, e mesmo em alguns momentos durante a gravação, toco o ombro do entrevistado, e a partir da altura que percebo, calculo a direção do rosto e da boca. Pronto, agora era só a prática para deixar todos esses recursos funcionando em harmonia. Microfone, câmera, ponto eletrônico e eu nos entendemos cada vez melhor e hoje dá tudo sempre certo! Mentira! Tem dia que sai tudo errado... Em eventos longos e movimentados o Telelibras conta com o trabalho de dois ou mais intérpretes de Libras, que se alternam ao lado do repórter nas gravações. Ao fim de toda matéria, o repórter se apresenta e apresenta o intérprete ao lado. A repórter da vez era eu, e o intérprete... Hum, o intérprete... depois de umas dez entrevistas, cada uma traduzida por um intérprete diferente, quem era mesmo o intérprete que me acompanhava? O intérprete de Libras em geral se mantém silencioso enquanto sinaliza, então eu não podia me orientar por sua voz. Puxa, se ao menos ele estivesse do meu lado, eu poderia tentar identificá-lo pelo cheiro. Mas não, ele estava à direita do entrevistado, que estava à minha direita. Eu me concentrei em tudo, no foco para a câmera, na altura da pessoa, no microfone, nas perguntas e respostas, tudo fluindo perfeitamente bem numa entrevista riquíssima, até que: “Sara Bentes e a intérprete Rafaela Sessenta para o Telelibras!” Ops, morremos na praia; ouvi a risada do Fabiano Campos, o intérprete da vez, e não acreditei no que acabara de fazer. A Rafaela Sessenta já tinha ido até embora. E aí, tome risadas, e fôlego pra gravar tudo de novo...
O Telelibras e seus profissionais seguem se aprimorando, para atender a um número cada vez maior de pessoas, e hoje já são diversos portais na Internet e alguns canais de TV que transmitem o telejornal mais inclusivo do Brasil. Assista em http://www.vezdavoz.com.br/site/telelibras.php

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